EPISÓDIO 2
Vânia já havia passado por muitos vexames em sua vida. Vexames que abalariam qualquer pessoa.
- Você poderia introduzir este pepino, por favor? -pediu um cliente enxuto de 45 anos em posição de recebimento.
-Eu quero que você vista esse vestido da minha mãe. –Mandou um cliente jovem e órfão.
-Quero que coma o meu marido todinho. –Disse a esposa jogando para Vânia uma calcinha com um consolo colado para que ela fizesse o ordenado, enquanto a esposa dava uma de voyeur exótica.
Muitas coisas já haviam deixado Vânia envergonhada. Mas nada, nada mesmo, era pior e mais vergonhoso do que fazer aniversário.
Para ela, era um pesadelo constatar que a cada ano ficava mais velha e que sua vida não tomava o rumo esperado.
Chegou à loja para trabalhar, mas não comentou a ninguém que estava em cumpleaños. Tentou agir o mais natural possível.
-O Hitler ainda não chegou? –Perguntou, quando Carla a olhou com reprovação.
-Não, Vânia. O Daniel, nosso patrão, ainda não chegou. –Disse Alessandro fingindo um respeito para que Vânia se tocasse que agora eles tinham uma espiã loira e alemã assistente do ditador.
-Por falar em chegar... Alessandro, será que tem como você me cobrir aí por uns instantes? - pediu Carlos. - É que uma prima de consideração, lá do Rio, vai chegar hoje e eu tenho que ir buscá-la. Veio passar uns dias aqui para comprar coisas e vai ficar lá em casa.
Alessandro disse que iria tentar.
Babi, que há um mês descobrira que perdeu na segunda fase do vestibular, não contou aos amigos. Nada lhe dava mais vergonha do que admitir uma derrota diante do vestibular. Sentia-se tão...
-Horrível! –Exclamou Babi ao ver a meia de Simone, que havia sido desfiada pelo seu filho do meio quando estava saindo de casa.
-Aqueles três demônios me dão tanto trabalho. –Reclamou Simone dando um muxoxo e olhando a meia, quando Daniel entrou na loja com um buquê de rosas e o entregou a Vânia.
-Pra mim? –Perguntou Vânia emocionada, pegando o buquê. –Não imaginei que você iria lembrar do meu aniversário... Mesmo assim obrigada! –Agradeceu, tímida por assumir ser seu aniversário. Todos a parabenizaram e reclamaram por ela não ter dito nada.
-Não seja idiota. Eu não ia perder meu tempo londrino para comprar flores. Ainda mais para você. –Disse Daniel mal humorado. Carla aproximou-se dele.
-Você quer alguma coisa, Dani?
-Leve um café para o meu escritório. E não me chame mais de Dani, eu sou seu patrão e não sua puta. – encerrou a conversa, indo para o escritório. Ela ficou com vergonha.
-Ehr... Deve estar nervoso. – Carla disfarçou.
Vânia olhava o buquê, e com a insistência de Simone, ela puxou o bilhete que acompanhava o presente. Era claro e conciso como uma ordem.
-Feliz aniversário, assinado: Uziel. –Vânia sentiu um comichão.
-O ex-noivo mandando flores no aniversário? –Estranhou Alessandro.
-Mas ele ainda é casado. Por que será que ele fez isso? O que vocês acham? –Perguntou Vânia roendo uma unha. Para resolver essa questão chamaram um reforço na hora do almoço.
-Ligue, agradeça e descubra. –Aconselhou Amoris no seu salão de beleza, minutos depois, após ser inteirada dos fatos. Vânia ficou insegura, mas Amoris é a pessoa mais persuasiva do mundo. –Ou você liga, ou vai ficar com essa dúvida. Não aja como uma adolescente. Se ele estiver querendo alguma coisa e você não tomar uma atitude, ele vai desistir de novo. –Sem mais argumentar, ela pegou o celular.
-Viva-voz, por favor. –Pediu Babi. Contra a sua vontade, Vânia cedeu e Uziel disse seu cordial alô.
-Oi, Uziel. Eu estou ligando para agradecer as flores...
-Do que você está falando? –Perguntou Daniel ao ser questionado por Carla.
-Eu estou falando da forma como você me trata. Nós não somos apenas patrão e funcionária. Mas mesmo assim você me trata pessimamente mal. –Cobrou Carla.
-Eu não quero que ninguém saiba. Lá fora é uma coisa, aqui dentro é outra. –Disse ele levantando-se para ir almoçar.
-Você tem vergonha de mim, né? Tem vergonha de assumir um namoro com uma funcionária.
-Eu tenho vergonha de muitas coisas. De você, não. Não seja ridícula. –Disse Daniel se retirando, deixando Carla falando sozinha.
-Por que você faz isso?! –Gritou Carla batendo a mão na mesa.
-Porque seu aniversário ficou na minha agenda profissional, minha secretária vê essas datas e envia flores para os aniversariantes. Esqueci de tirar seu nome da lista. –Explicou Uziel. Todos os amigos ficaram mudos e Vânia com uma vergonha dobrada.
-Ah, entendi.
-Mas você não se chateou, não é? Digo... por eu ter enviado as flores.
-Eu me chateei porque você mandou por engano! –Exaltou-se Vânia desligando o celular. Ficou vermelha de raiva. Ninguém disse nada, excerto Amoris que balançou a cabeça em sinal de reprovação.
-Essa sua atitude deixou claro que você está loca por ele.
Vânia apertou os dentes e depois explodiu.
-Odeio fazer aniversário! –Gritou ela.
De volta ao trabalho. Lá pelas 5 da tarde, o celular de Carlos tocou e ele foi pedir um favor à Carla.
-Você pode distrair o Daniel por 5 minutos? Eu vou à rodoviária pegar uma amiga que chegou e já volto. – Pediu, aproveitando-se de que sabia que Carla tinha um interesse de segunda opção por ele. Alessandro lhe contou.
Carlos chegou à rodoviária, procurando sua prima de consideração.
-Estou aqui! –Disse ela gritando.
-Como você está, Débora?
-Ótima. E tu? –Perguntou ela mascando um chiclete e olhando para ele. –Continua um gato gostoso. Eu ia fácil. – Carlos ficou sem graça.
-Eu vou te levar rápido para minha casa, que eu ainda tenho que voltar para o trabalho.
-Desculpa, eu cheguei muito cedo. Eu fico no teu trabalho te esperando.
-Não! –Gritou Carlos. –É que... –Tentou explicar, mas não teve jeito. Teve que levá-la.
Eles entraram na loja. Todos a olharam. Débora os cumprimentou com um aceno meio escandaloso.
-Você não tinha me dito que sua amiga era uma mulata tão bonita. –Disse Alessandro.
-Ela não é para você. Ela é muito vulgar. Não combina. –Disse Carlos envergonhado da amiga de infância. Os funcionários, sem movimento, foram conversar com Débora, querendo conhecê-la melhor. Encostado no caixa, Carlos suou frio. Não queria que seus amigos a conhecessem. Débora era o seu passado em forma de gente. Ela tinha um jeito rude das meninas faveladas do morro da Rocinha. O português era mais errado do que o voto dos brasileiros, como diria Daniel.
Quando o expediente terminou, Carlos levantou as mãos para o céu e tratou de sumir dali com a sua amiga.
-Vai ficar aqui quanto tempo?
-Já ta querendo que eu vá? Nem cheguei. –Disse Débora rindo, sentando-se no sofá da casa dele. –Eu vou depois de amanhã. Só vou lá no Brás comprar as roupas para revender e já volto. Não precisa ficar com medo.
-Não estou com medo é que... Você sabe...
-Sei. Cê tem vergonha dos amigo do Rio, de onde cê veio, o que sua família faz lá. – disse ela. Carlos tentou argumentar. Mas Débora era muito descolada para se importar com isso. –Falando em sua família. Seu irmão mandou isso. – entregou-lhe algo. Ele pegou, e ficou envergonhado.
-Eu não uso, mas é que tem uns amigos meus que gostam... –Ela o interrompeu.
-Tu tá na sua casa, não precisa me dar explicação. –disse ela levantando-se e tirando a blusa, com os seios à mostra. Carlos ficou tenso. –Que foi? Não tem nada que tu nunca tenha visto aqui. Vou tomar banho. –e saiu.
Carlos, com uma leve ereção que logo se dissipou, ficou olhando o papelote de cocaína que seu irmão lhe mandara de presente.
-Oi, Vanhota. Que emocionante você estar fazendo aniversário hoje. Você disse que não ia fazer nada, porque não gostava de comemorar, mas eu tô de bobeira. Porque não saímos? – Babi ligou para Vânia, buscando uma forma de fugir dos parentes que se instalaram em sua casa e não paravam de falar em vestibular.
-Desculpa, Babi. Mas não vai dar. Tenho que fazer umas coisas. Estou indo agora para casa da minha mãe. – era mentira.
Após desligar o celular, Vânia já estava pronta para o seu destino. Minutos depois, já estaria nele.
-Você é a Das Dores? –Perguntou um homem de 37 anos casado, dentro do carro, esperando-a no portão do prédio.
-Eu mesma. –Disse Vânia entrando no carro. Das Dores era uma das personagens que Vânia mais usava. Isso porque o nome chamava a atenção dos que gostam de uma loucura a mais.
-Me diga uma coisa: você gosta das dores? –Perguntou o cliente fazendo um trocadilho infeliz. Não havia nem o que responder. Vânia sorriu mais por depressão do que por graça. Olhou para a janela e envergonhou-se de estar ali, de ser aquilo. Mas com um suspiro intenso, ela pensou: E lá vamos nós.
Simone estava visitando os melhores amigos de Tito, seu marido gigolô, os quais ela não suporta. Pensou em bater o pé e dizer que não iria, mas seu marido estava passando por um momento delicado. Então achou melhor fazer a vontade dele.
-Este vaso, nós compramos em Paris. Foi caríssimo. –Disse Ângela que sempre se referia como “nós”, colocando ela e seu esposo. – Ah, gente. Que férias maravilhosas.
Tito invejava seu amigo Paulo, pois a esposa dele o tratava tão bem. Queria que Simone fosse assim. Falsamente, Simone concordava, elogiava e apoiava tudo o que “nós” dizia. Foi aí que seus filhos brincando ou brigando, nunca se sabe, bateram o braço no dito vaso de Paris que se despedaçou.
A primeira coisa que Simone viu foram os olhos de “nós” em cima dela.
-Mil perdões. Eu vou matar esses demônios! –Gritou Simone disposta a fazê-lo de verdade, pois nunca havia passado tanta vergonha em sua vida.
-Por favor, nos digam quanto foi que... –Tentou remediar Tito.
-Não. Imagine. Foi muito caro e nós não voltaremos à Paris para comprar outro – Disse Paulo com pesar.
-Eu estou muito envergonhada. De verdade. –Disse Simone.
-Deixe isso para lá. Mas da próxima vez, por favor, não tragam seus filhos. Eles mexem em tudo. –Disse Ângela aborrecida juntando os cacos.
Simone e Tito foram embora mais cedo da casa do “nós” e passaram no Hipermercado.
-São seus filhos? –Perguntou a funcionária pronta para reclamá-la, quando os meninos derrubaram duas pilhas de latas de molho de tomate. Simone olhou para eles e dessa vez a vergonha falou mais alto.
-Não. –E saiu deixando seus filhos, sem acreditar no que fizera. Ao chegar no setor de DVDs mandou que Tito fosse buscá-los. Iriam embora agora.
-Por que a senhora disse que não era nossa mãe? –Perguntou o mais velho, enquanto saiam do hipermercado. Tito a olhou censurando, e ela tentou amenizar.
-Porque se não, eu teria que pagar pelas latas que vocês amassaram.
-Ótimo exemplo. – Criticou Tito.
-Você acha? Então chame o Juizado. Eu estou cheia de você só ficar me criticando.
-Não se pode ter vergonha dos filhos! – brigou Tito.
-É mais fácil eu ter vergonha de você! –Soltou Simone sem pensar. Tentou contornar, mas era tarde demais.
-Hoje vou dormir no sofá. –Ele saiu. Ela olhou para os meninos e deu um cascudo em cada um dos três, eles saíram correndo e depois Simone ficou envergonhada do quanto era péssima mãe e esposa.
Morar sozinha dá muita solidão. Foi pensando nisso que Amoris começou a participar de um site de namoros. Apesar de seu jeito direto, forte e decisivo, só ela sabia a solidão que passava diariamente. Ela não era de mostrar esse seu outro lado, tinha vergonha. E lá estava ela novamente, como a: Rosa Solitária.
E logo um tal Solteiro Maduro disse: oi. Amoris respondeu como quem não queria nada, mas a conversa rendeu.
No final das contas, ficaram teclando a madrugada toda.
Depois de se despedir de Rosa Solitária, Alessandro desligou o computador. Não era hora de ter pressa, mas ele vislumbrou um futuro namoro com a recém-conhecida, desde que ela fosse bonita... Isso só o tempo diria. Mas ele tinha certeza de que iria arrasar como o Solteiro Maduro.
Daniel e Carla se encontraram numa lanchonete. Já passava da meia-noite.
-Eu quero definir nossa situação. –Disse ela.
-Se você quiser vai continuar assim, se não quiser terminamos.
-Pra você tanto faz, né?
-Eu gosto de você. Mas o que eu posso te oferecer é isso. –Disse sem muito carinho.
-Tudo bem. Vou parar de te pressionar. – Carla o beijou de surpresa. Ao fim, para o azar de Daniel, ele viu um amigo empresário.
-Vou ao banheiro. –Disse ele, fugindo sem disfarçar.
No banheiro, pensou numa forma de sair sem ser visto. Então teve uma idéia.
-Vamos embora, me deu uma vontade louca de levar você a um motel 5 estrelas. –puxou-a pelo braço, comprando a raiva dela com luxo. E Carla foi. Sentindo-se um objeto, mas foi.
O expediente já estava no fim, e os funcionários prepararam uma festa-surpresa para Vânia. Simone recolheu contribuições de todos os amigos e foi ao salão de Amoris levar o dinheiro.
-Ok. Vou comprar as coisas agora. –Disse Amoris, ao receber o montante.
-Amiga, posso desabafar um pouquinho? –Perguntou Simone, sentando-se. Amoris ficou até preocupada. – Sabe, eu amo meus filhos e o meu marido... – Ela parou e abaixou a cabeça.
-I know, sei disso. Porém...
-... Mas eu tenho vergonha deles. Eu sou um monstro, não sou? –Amoris percebeu que o consolo seria longo.
Daniel saiu do seu escritório.
-Vou ao banco fazer uns pagamentos com a Carla. Fechem a loja quando der o horário. –Disse ele saindo com a funcionária, que voltaria a pressioná-lo no motel para onde iriam.
A loja estava vazia. Vânia estava triste, com um olhar longe. Uma mulher entrou, Babi foi atender, mas não era compradora, era Débora, a prima de Carlos, que fizera todas suas comprar no Brás pela manhã e já estava querendo ir embora.
-Será que você pode me ajudar? – Débora pediu a Carlos. – Não consigo ir à Rodoviária carregando tudo isso.
-Mas já vai? –Questionou Carlos, falsamente. –Segurem as pontas aí pra mim.– disse aos que ficaram, e saiu.
Sem chamar atenção, Vânia também se retirou.
Antes de fecharem a loja, Babi foi verificar se todas as portas estavam trancadas, e se assustou ao encontrar Vânia na despensa, agachada no chão, chorando. Babi perguntou por que ela estava chorando, mas a amiga não soube responder. Ou não poderia responder. Chorava por sua situação de garota de programa, pelo avançar da idade, pela rejeição do Uziel, pela sua mãe, pela vergonha de tudo. Babi tentou consolá-la da melhor maneira.
-Odeio fazer aniversário sempre fico assim. –Explicou Vânia, enxugando as lágrimas.
-Vai ficar tudo bem. Eu não passei no vestibular e não estou chorando. – Vânia não sabia disso. Tentou então confortá-la, dizendo que na próxima ela iria passar, e tudo aquilo que Babi ouvia a cada derrota. – É, eu sei. Fica pra próxima. Ah, e é melhor eu te dizer logo. Estamos preparando uma festa -surpresa no salão da Amoris. Mas, por favor, finja estar surpresa.
-Tá bom.
Às 6 horas, Carlos tinha regressado da Rodoviária, e fecharam a loja.
-Vamos passar no salão da Amoris, ela disse que quer ir conosco. –Mentiu Simone. Aquele era o pretexto para levar Vânia à festa-surpresa.
Pior do que sentir vergonha dos outros, é quando sentimos vergonha de nós mesmos. Vergonha de nossas vergonhas.
Como Vânia, que para não magoar os amigos, apagava as velinhas, escondendo a vergonha de ser o que se tornara. Ao lado dela, estava um Alessandro que sentia vergonha de seu passado e de suas falhas do presente. Enquanto comia o bolo de glacê branco, Carlos se lembrava da noite anterior em que fez um pequeno carreirão de pó de cocaína no centro da sala e o inalou, fechando uma narina e sugando com a outra. Quando notou o branco do glacê, lembrou-se do branco sujo da droga.
-Vem, Carlos! Vamos tirar uma foto! – gritou Babi, unindo todos os seus melhores amigos numa imagem em que, para sempre, todos se veriam sorrindo e orgulhosos de terem uns aos outros.
CONTINUA
NA SEMANA QUE VEM
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